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quarta-feira, 9 de maio de 2012

O condutor de veículo é obrigado a soprar o bafômetro?


Lei seca. Condutor de veículo automotor. Penalidades e medidas administrativas previstas no CTB. Nemo tenetur se detegere. Direito a não autoincriminação. Direito ao silêncio. Soprar ou não soprar o bafômetro, eis a questão.



    Desde a edição da "Lei Seca" (Lei 11.705/2008), o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, Lei 9.503/1997) possui a seguinte redação: 


Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Pena - detenção, de 6 meses a 3 anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. (ênfase acrescida).

      
  A exigência de concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 decigramas significa que a única maneira de comprovar esse crime é através do exame de alcoolemia.  

   O Superior Tribunal de Justiça, conforme o Recurso Especial nº 1111566, julgado em 28/03/2012, entende que apenas o bafômetro e o exame de sangue servem como meio de prova para demonstrar a ocorrência do crime do art. 306 do CTB. Por isso, caso o suspeito não se submeta ao teste de alcoolemia, fica impossível comprovar a concentração mínima de alcool e, consequentemente, não há que se falar nesse crime.

    Então, de acordo com a atual redação do art. 306 do CTB, se o suspeito não sopra o bafômetro ou não fornece sangue, inexiste possibilidade de sanção criminal.

    Fora da esfera penal, o CTB (art. 277, §3º, c/c art. 165) impõe as mesmas sanções - não criminais - ao condutor embriagado e ao que não se submeter a qualquer teste de acoolemia. O art. 165 do CTB prevê infração gravíssima (7 pontos na CNH), com imposição de multa (R$ 957,70) e suspensão do direito de dirigir por 12 meses, além de medida administrativa de recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, até a apresentação de outro condutor.
    Portanto, o condutor sóbrio que não fizer teste de alcoolemia sofrerá as mesmas penalidades e medidas administrativas do condutor que estiver embriagado.

   Ocorre que a Constituição da República assegura o nemo tenetur se detegere ("nada a temer, por se deter"/direito a não autoincriminação).
   
    Diante do conflito entre o art. 277, §3º, do CTB - que impõe sanções ao condutor que exercer o direito a não autoincriminação - e a Constituição, qual a solução?    

   Primeiro, é importante observar que o art. 277, caput, do CTB, prevê o seguinte: “todo condutor de veículo automotor, ENVOLVIDO EM ACIDENTE de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, SOB SUSPEITA de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado” (ênfase acrescida).

     Então, apenas o condutor envolvido em acidente de trânsito ou que estiver sob supeita de dirigir sob a influência de alcool é que poderá ser submetido a teste de alcoolemia. "Poderá" ser submetido, pois toda pessoa pode exercer a não autoincriminação, direito com base constitucional. 
 

   Conforme já exposto no texto Constitucionalização do Direito Penal, a Constituição da República é o centro do ordenamento jurídico e toda a legislação deve ser interpretada a partir dela, sendo certo que essa leitura é condição para aplicação das normas.

   Todo o sistema jurídico está condicionado aos dispositivos constitucionais. A obediência à Constituição funciona como uma lente, através da qual a legislação deve ser lida. Segundo ensina Rogério Greco:




 A interpretação conforme a constituição é o método de interpretação através do qual o intérprete, de acordo com uma concepção penal garantista, procura aferir a validade das normas mediante o seu confronto com a Constituição. As normas infraconstitucionais devem, sempre, ser analisadas e interpretadas de acordo com os princípios informadores da Carta Constitucional, não podendo, de modo algum, afrontá-los, sob pena de ver judicialmente declarada a sua invalidade, seja através do controle direto de constitucionalidade, exercido pelo STF, seja pelo controle difuso, atribuído a todos os juízes que atuam individual (monocráticos) ou coletivamente (colegiados). (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 11ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009, p. 44, ênfase acrescida).

        
    Tendo em vista o direito à não autoincriminação, quem for parado em blitz não pode ser obrigado a se submeter a qualquer meio de prova/teste de acoolemia.    

     Em razão do direito a não autoincriminação, qualquer pessoa pode se negar a "produzir prova" que possa lhe afetar (favorecer ou prejudicar).
O direito à prova não é absoluto. Se a finalidade da atuação estatal não é a de aplicar pena de qualquer maneira, os fatos devem ser apurados de acordo com uma forma moral inatacável. O direito a não autoincriminação deve ser informado ao suspeito, inclusive.

     A respeito do procedimento de fiscalização, já foi noticiado o seguinte: "se não soprar o bafômetro, o suspeito deve ser conduzido por crime de desobediência (art. 330 do CP)". Absurdo. Ninguém pode ser constrangido a soprar o bafômetro. Durante a fiscalização, c
aso o policial pratique algum excesso, ofendendo a liberdade de locomoção, poderá configurar um crime, o abuso de autoridade (art. 3º da Lei 4.898/1965).     

     Neste sentido, pode-se ter dois tipos de processos: um com ataque à dignidade, e, outro, em que ela é respeitada. Forçar o suspeito a participar de um meio de prova é impor-lhe situação incômoda, vexatória, humilhante e aflitiva, ofendendo a dignidade da pessoa e a garantia de não autoincriminação. Obrigar o condutor a soprar o bafômetro é meio ilegítimo para obtenção de prova

    
    A respeito do tema, afirmou César Dario Mariano da Silva: "Não cabe ao Estado usar de meios espúrios para a obtenção de uma confissão ou qualquer outra prova. Nesse sentido: STF: HC 80949/RJ, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, 1ª T., votação unânime, jugado em 30/10/2001". (in Provas Ilícias: princípio da proporcionalidade, interceptação e gravação telefônica, busca e apreensão,sigilo e segredo,confissão, Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e sigilo. São Paulo: Edit. Atlas, 2010, p. 77, ênfase acrescida).
  
  O privilégio contra a não autoincriminação traduz direito público subjetivo, com base constitucional. Esse direito é assegurado a qualquer pessoa, pela Constituição brasileira, conforme se extrai do seu art. 5º, inc. LXIII (direito ao silêncio) e seus §§ 2º e 3º (tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos), c/c o art. 8°, 2, alínea “g” (direito a não autoincriminação), do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos – Decreto n° 678, de 1992).  
     A respeito da garantia de não autoincriminação, Antônio Magalhães Gomes Filho leciona:

. ... . Embora aludido ao preso, a interpretação da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange toda e qualquer pessoa, pois diante da presunção da inocência, que também constitui garantia fundamental do cidadão (art. 5º, inc. LVII, da CF e, ainda, Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, §2º), a prova da culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação. EM DECORRÊNCIA DISSO, SÃO INCOMPATÍVEIS COM OS REFERIDOS TEXTOS QUAISQUER DISPOSIÇÕES LEGAIS QUE POSSAM, DIRETA OU INDIRETAMENTE, FORÇAR O SUSPEITO, INDICIADO, ACUSADO, OU MESMO QUALQUER PESSOA (INCLUSIVE A TESTEMUNHA) A UMA AUTO-INCRIMINAÇÃO.
. ... . O DIREITO À NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO CONSTITUI UMA BARREIRA INTRANSPONÍVEL AO DIREITO À PROVA DE ACUSAÇÃO; SUA DENEGAÇÃO, SOB QUALQUER DISFARCE, REPRESENTARÁ UM INDESEJÁVEL RETORNO ÀS FORMAS MAIS ABOMINÁVEIS DA REPRESSÃO, COMPROMETENDO O CARÁTER ÉTICO-POLÍTICO DO PROCESSO E A PRÓPRIA CORREÇÃO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL (in Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 113/114) ênfase acrescida.

    No mesmo sentido, Aury Lopes Júnior afirma que a recusa é um direito, que não pode gerar prejuízos ao suspeito:


. ... . ATRAVÉS DO PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE DETEGERE, O SUJEITO PASSIVO NÃO PODE SER COMPELIDO A DECLARAR OU PARTICIPAR DE QUALQUER ATIVIDADE QUE POSSA INCRIMINÁ-LO OU PREJUDICAR SUA DEFESA (...). Por elementar, sendo a recusa um direito, obviamente não pode causar prejuízos ao imputado e muito menos ser considerado delito de desobediência. (in Introdução Crítica ao Processo Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 233) ênfase acrescida.



    Por isso, durante a fiscalização de trânsito, o suspeito tem o direito de negar a soprar o bafômetro, sem necessidade de justificar a negativa, bem como pode ficar em silêncio, sem gerar prejuízo à sua defesa. Nenhuma pessoa pode ser forçada a se submeter a teste de alcoolemia. 

   Então, dizer que o suspeito que se nega será submetido a medidas administrativas e penalidades, é o mesmo que pressioná-lo a submeter a exame de alcoolemia, ainda que venha a incriminar-se.  

    Portanto, a "Lei Seca" trouxe ofensa ao nemo tenetur se detegere ("nada a temer, por se deter"/direito a não autoincriminação).


    




*Sempre é importante lembrar: "Se for dirigir, não beba. Se beber, não dirija!"



segunda-feira, 7 de maio de 2012

Da caução como condição para atendimento hospitalar de urgência


A exigência de caução, como condição para atendimento de urgência, é crime?


Atualmente é comum ler notícias de pessoas que são submetidas à exigência de caução – através de cheque, nota promissória, ou qualquer outra forma – no momento do ingresso de paciente para atendimento hospitalar, em situações de emergência.


domingo, 15 de abril de 2012

Denúncia anônima



DA INADMISSIBILIDADE DA “DENÚNCIA ANÔNIMA” COMO ELEMENTO PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA “NOTÍCIA ANÔNIMA” EM SENTENÇA CONDENATÓRIA COMO MEIO DE PROVA. ILICITUDE DA BUSCA POR PROVAS – v.g. interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário, busca e apreensão, etc – QUE SE INICIAR EXCLUSIVAMENTE POR "NOTÍCIA ANÔNIMA”.



Atualmente é comum ocorrer investigação a partir de informação obtida através de notícia anônima. Os serviços de “disque denúncia” e similares recebem, diariamente, informações sobre supostos crimes.

Busca-se, neste texto, demonstrar que a “denúncia anônima” pode até ser aproveitada para que a polícia vá a algum local verificar a prática de crime, mas nunca poderá ser utilizada como elemento probatório, para basear uma sentença condenatória. Também não poderá servir de justificativa para determinar colheita de prova que dependa de autorização judicial (por exemplo: interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário, busca e apreensão, etc).

A CR/88 assegura o exercício de cidadania e de livre manifestação do pensamento, sendo proibido o anonimato (art. 5º, inc. IV, da CR). Então, existe um princípio constitucional que bate de frente à “denúncia anônima”: a vedação ao anonimato. Essa vedação tem por objetivo proteger os indivíduos da crucificação e evitar o desgaste da imagem pessoal e a agressão ao conceito das pessoas perante o meio social.

Entender de modo diverso seria proteger um cidadão que fez uma "denúncia anônima" com o escopo de prejudicar e importunar a vida de outrem, seja por inveja, vingança, ódio, ou qualquer motivo desarrazoado.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Da concessão de prazo para apresentação de alegações finais através de memoriais




O art. 403 do Código de Processo Penal prevê apresentação oral das alegações finais, ao final da audiência de instrução. Apesar disso, é comum a defesa requerer a concessão de prazo individualizado para apresentar defesa técnica, através de memoriais.

Todavia, em algumas ocasiões, tal pedido é indeferido, pois o parágrafo 3º do art. 400 do CPP prevê que o juiz somente poderá conceder prazo de 5 dias "considerada a complexidade do caso ou o número de acusados".

No caso de indeferimento do pedido de concessão de prazo para apresentação das alegações finais, a defesa se vê em uma situação que exige elaboração e apresentação de razões finais - orais - logo no instante seguinte, ainda em audiência.

É claro que o defensor deve imaginar tudo o que pode ocorrer em audiência, pois uma defesa bem preparada dificilmente será surpreendida.

Nesta oportunidade serão expostos, de maneira objetiva, argumentos que demonstram a necessidade de apresentação das alegações finais através de memoriais, em prazo individualizado. Confira-se:

O pedido de concessão de prazo para apresentação dos memoriais não gera qualquer risco para a instrução do processo, eis que, se o procedimento atingiu a fase das alegações finais, é porque, em regra, não há mais provas a serem produzidas.

Ademais, os dispositivos legais que sugerem a apresentação oral das alegações finais constituem verdadeiro cerceamento de defesa, pois o defensor terá certeza da prova produzida somente na audiência, ocasião em que firmará qual tese será desenvolvida nas alegações finais. O Ministério Público, por sua vez, tem a acusação definida desde a petição inicial acusatória.

Ressalte-se: iniciar as alegações finais, oralmente, logo após o término da colheita da prova oral, em prazo curto, ocasiona cerceamento de defesa.

No sentido do acima defendido, Ana Paula da Fonseca Rodrigues Martins, Edson Luz Knippel e Henrique Zelante citam os seguintes argumentos:



1. o tempo é muito exíguo para a elaboração da tese defensiva, ante ao que foi apurado na instrução;
2. quebra da isonomia, uma vez que o membro do Ministério Público tem a acusação completamente delineada desde a inicial acusatória;
3. muitas vezes, deparamo-nos, na vida prática, com o deferimento de utilização de pen drive pelo membro do Ministério Público na audiência. Há nesse caso verdadeira afronta ao princípio da paridade de armas, tendo em vista que a defesa, como não tem suas teses previamente delineadas, deverá formulá-las e tecê-las oralmente naquele momento;
(in Procedimentos Penais: uma visão da defesa sobre os procedimentos ordinário, sumário e o do júri. Ed. Atlas, 2010, p. 43, ênfase acrescida).


A imposição da realização das alegações finais em audiência prejudica, tão somente, a defesa. Uma determinação dessa natureza pode ocasionar uma participação defensiva meramente simbólica, que vai na contramão da necessidade de uma defesa efetiva, corolário do princípio da ampla defesa (art. 5º, inc. LV, CR/1988).

Diante disso, a concessão de prazo individualizado para apresentação de alegações finais, através de memoriais, reflete situação imprescindível para o adequado exercício da irrenunciável defesa técnica.