Henrique Viana Pereira
Quando
acontece um acidente de trânsito e o condutor de veículo automotor se afasta do
local, pode ocorrer suspeita da prática do crime do art. 305 do Código de
Trânsito Brasileiro (CTB, Lei nº 9.503/1997).
O
art. 305 do CTB prevê o seguinte: “Afastar-se o condutor do veículo do local
do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser
atribuída: Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa”.
Ocorre
que a Constituição da República assegura o nemo tenetur se detegere
("nada a temer, por se deter"/direito a não autoincriminação).
O
privilégio contra a não autoincriminação traduz direito público subjetivo, com
base constitucional. Esse direito é assegurado a qualquer pessoa, pela
Constituição brasileira, conforme se extrai do seu art. 5º, inc. LXIII (direito
ao silêncio) e seus parágrafos 2º e 3º (tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos), c/c o art. 8°, 2, alínea “g” (direito a não
autoincriminação), do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de
Direitos Humanos – Decreto n° 678, de 1992).
A
respeito da garantia de não autoincriminação, Antônio Magalhães Gomes Filho
ensina:
Embora aludido ao preso, a
interpretação da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia
abrange toda e qualquer pessoa, pois diante da presunção da inocência, que
também constitui garantia fundamental do cidadão (art. 5º, inc. LVII, da CF e,
ainda, Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, §2º), a prova da
culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação. EM DECORRÊNCIA DISSO, SÃO
INCOMPATÍVEIS COM OS REFERIDOS TEXTOS QUAISQUER DISPOSIÇÕES LEGAIS QUE POSSAM,
DIRETA OU INDIRETAMENTE, FORÇAR O SUSPEITO, INDICIADO, ACUSADO, OU MESMO
QUALQUER PESSOA (INCLUSIVE A TESTEMUNHA) A UMA AUTO-INCRIMINAÇÃO. ... . O
DIREITO À NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO CONSTITUI UMA BARREIRA INTRANSPONÍVEL AO
DIREITO À PROVA DE ACUSAÇÃO; SUA DENEGAÇÃO, SOB QUALQUER DISFARCE, REPRESENTARÁ
UM INDESEJÁVEL RETORNO ÀS FORMAS MAIS ABOMINÁVEIS DA REPRESSÃO, COMPROMETENDO O
CARÁTER ÉTICO-POLÍTICO DO PROCESSO E A PRÓPRIA CORREÇÃO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO
JURISDICIONAL (GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo
Penal, São Paulo: Edit. Revista dos Tribunais, 1997, p. 113/114) ênfase
acrescida.
No
mesmo sentido, Aury Lopes Júnior afirma que a recusa é um direito, que não
pode gerar prejuízos ao suspeito:
ATRAVÉS DO PRINCÍPIO DO NEMO
TENETUR SE DETEGERE, O SUJEITO PASSIVO NÃO PODE SER COMPELIDO A DECLARAR OU
PARTICIPAR DE QUALQUER ATIVIDADE QUE POSSA INCRIMINÁ-LO OU PREJUDICAR SUA
DEFESA (...). Por elementar, sendo a recusa um direito, obviamente não pode causar
prejuízos ao imputado e muito menos ser considerado delito de desobediência.
(LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Edit. Lumen Juris, 2005, p. 233) ênfase acrescida.
Então,
o art. 305 do CTB ofende o nemo tenetur se detegere (direito de não
produzir provas que possam afetar a própria pessoa) e, por isso, é
inconstitucional. Não é possível punir criminalmente a conduta descrita no art.
305 do CTB.
Nesse
sentido, a Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais
declarou a inconstitucionalidade do art. 305 do CTB, conforme ementa abaixo
transcrita:
INCIDENTE DE
INCONSTITUCIONALIDADE – RESERVA DE PLENÁRIO – ART. 305, DO CÓDIGO DE TRÂNSITO
BRASILEIRO – INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO FUNDAMENTAL AO SILÊNCIO –
INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA (TJMG – Corte Superior – Incidente de
Inconstitucionalidade nº 1.0000.07.456021-0/000 - Relator Desembargador Sérgio
Resende - Publicado em 12/09/2008, ênfase acrescida).
No mesmo sentido:
O DELITO PREVISTO NO ART. 305
DA LEI 9.503/97 É INCONSTITUCIONAL, POSTO QUE OFENDE O PRINCÍPIO DE QUE NINGUÉM
É OBRIGADO A PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO, IMPONDO-SE, POR ISSO, A ABSOLVIÇÃO
DO RÉU, NOS TERMOS DO ART. 386, III , DO CPP. (...). (TJMG - 2ª Câmara Criminal
– Apelação nº 1.0145.07.381756-4/001 - Relator Desembargador Vieira de Brito -
Publicado em 27/07/2009, ênfase acrescida).
Ademais, entendimento diverso ofende
os seguintes dispositivos constitucionais:
art. 5°, inc. LXIII (direito
ao silêncio) e art. 5º, parágrafos 2° e 3° (tratados e convenções
internacionais sobre direitos humanos), da Constituição da República c/c o art.
8°, 2, alínea “g” (direito a não auto-incriminação), do Pacto de São José da
Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos – Decreto n° 678 de 1992).
Importante esclarecer que, em acidente de trânsito com vítima (resultado morte ou lesão corporal), a conduta da pessoa que deixar de prestar socorro não irá configurar o art. 305 do CTB (inconstitucional), mas poderá configurar os seguintes delitos:
- Art. 135 do Código Penal (omissão de socorro): para o pedestre ou condutor
não envolvido no acidente, que não prestar assistência à vítima ou deixar de
pedir o socorro da autoridade pública;
- Art. 304 do CTB: para o condutor – envolvido no acidente, mas que não teve culpa – que não prestar imediato socorro à vítima ou que não solicitou auxílio da autoridade pública).
- Art. 302, parágrafo único, inc. III, do CTB: para o condutor, que teve culpa em acidente, com resultado morte, que não prestou socorro à vítima do acidente.
- Art. 303, parágrafo único, c/c o art. 302, parágrafo único, inc. III, ambos do CTB: para o condutor, que teve culpa em acidente, com resultado lesão corporal, que não prestou socorro à vítima do acidente.
- Art. 304 do CTB: para o condutor – envolvido no acidente, mas que não teve culpa – que não prestar imediato socorro à vítima ou que não solicitou auxílio da autoridade pública).
- Art. 302, parágrafo único, inc. III, do CTB: para o condutor, que teve culpa em acidente, com resultado morte, que não prestou socorro à vítima do acidente.
- Art. 303, parágrafo único, c/c o art. 302, parágrafo único, inc. III, ambos do CTB: para o condutor, que teve culpa em acidente, com resultado lesão corporal, que não prestou socorro à vítima do acidente.
Também é
relevante dizer que o parágrafo único do art. 304 do CTB, ao prever que o
condutor também será responsabilizado pela omissão de socorro, ainda que se
trate de vítima com morte instantânea, prevê verdadeiro absurdo.
Ora,
não há que se falar em omissão de socorro para vítima com morte instantânea.
Não há crime sem bem jurídico a ser tutelado. Todo socorro pressupõe uma
integridade física a ser reparada ou uma vida a ser protegida.
Punir
alguém por deixar de prestar socorro à pessoa já falecida constitui verdadeira
aberração jurídica, que ofende o princípio da lesividade (ofensividade), pois
não há afetação concreta de um bem jurídico. Ademais, não há que se falar em
fato típico por absoluta impropriedade do objeto (crime impossível, art. 17 do
Código Penal).
Diante
o exposto, conclui-se pela inaplicabilidade do art. 305 do CTB, sob pena de
ofensa à Constituição da República de 1988.
--
Como citar este texto:
PEREIRA, Henrique Viana. Da
inconstitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro. Blog
Temas Penais, 1º de maio de 2013. Disponível em: http://www.temaspenais.blogspot.com.br/2013/05/da-inconstitucionalidade-do-art-305-do.html .
Acesso em: data do acesso...