Páginas

quarta-feira, 1 de maio de 2013

DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 305 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO





Henrique Viana Pereira

                           

         Quando acontece um acidente de trânsito e o condutor de veículo automotor se afasta do local, pode ocorrer suspeita da prática do crime do art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, Lei nº 9.503/1997). 



          O art. 305 do CTB prevê o seguinte: “Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa”.



         Ocorre que a Constituição da República assegura o nemo tenetur se detegere ("nada a temer, por se deter"/direito a não autoincriminação).



        O privilégio contra a não autoincriminação traduz direito público subjetivo, com base constitucional. Esse direito é assegurado a qualquer pessoa, pela Constituição brasileira, conforme se extrai do seu art. 5º, inc. LXIII (direito ao silêncio) e seus parágrafos 2º e 3º (tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos), c/c o art. 8°, 2, alínea “g” (direito a não autoincriminação), do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos – Decreto n° 678, de 1992).



            A respeito da garantia de não autoincriminação, Antônio Magalhães Gomes Filho ensina:



Embora aludido ao preso, a interpretação da regra constitucional deve ser no sentido de que a garantia abrange toda e qualquer pessoa, pois diante da presunção da inocência, que também constitui garantia fundamental do cidadão (art. 5º, inc. LVII, da CF e, ainda, Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, §2º), a prova da culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação. EM DECORRÊNCIA DISSO, SÃO INCOMPATÍVEIS COM OS REFERIDOS TEXTOS QUAISQUER DISPOSIÇÕES LEGAIS QUE POSSAM, DIRETA OU INDIRETAMENTE, FORÇAR O SUSPEITO, INDICIADO, ACUSADO, OU MESMO QUALQUER PESSOA (INCLUSIVE A TESTEMUNHA) A UMA AUTO-INCRIMINAÇÃO. ... . O DIREITO À NÃO AUTO-INCRIMINAÇÃO CONSTITUI UMA BARREIRA INTRANSPONÍVEL AO DIREITO À PROVA DE ACUSAÇÃO; SUA DENEGAÇÃO, SOB QUALQUER DISFARCE, REPRESENTARÁ UM INDESEJÁVEL RETORNO ÀS FORMAS MAIS ABOMINÁVEIS DA REPRESSÃO, COMPROMETENDO O CARÁTER ÉTICO-POLÍTICO DO PROCESSO E A PRÓPRIA CORREÇÃO NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL (GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal, São Paulo: Edit. Revista dos Tribunais, 1997, p. 113/114) ênfase acrescida.



            No mesmo sentido, Aury Lopes Júnior afirma que a recusa é um direito, que não pode gerar prejuízos ao suspeito:



ATRAVÉS DO PRINCÍPIO DO NEMO TENETUR SE DETEGERE, O SUJEITO PASSIVO NÃO PODE SER COMPELIDO A DECLARAR OU PARTICIPAR DE QUALQUER ATIVIDADE QUE POSSA INCRIMINÁ-LO OU PREJUDICAR SUA DEFESA (...). Por elementar, sendo a recusa um direito, obviamente não pode causar prejuízos ao imputado e muito menos ser considerado delito de desobediência. (LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edit. Lumen Juris, 2005, p. 233) ênfase acrescida.


  
 
          Então, o art. 305 do CTB ofende o nemo tenetur se detegere (direito de não produzir provas que possam afetar a própria pessoa) e, por isso, é inconstitucional. Não é possível punir criminalmente a conduta descrita no art. 305 do CTB.



          Nesse sentido, a Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais declarou a inconstitucionalidade do art. 305 do CTB, conforme ementa abaixo transcrita: 



INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE – RESERVA DE PLENÁRIO – ART. 305, DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO – INCOMPATIBILIDADE COM O DIREITO FUNDAMENTAL AO SILÊNCIO – INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA (TJMG – Corte Superior – Incidente de Inconstitucionalidade nº 1.0000.07.456021-0/000 - Relator Desembargador Sérgio Resende - Publicado em 12/09/2008, ênfase acrescida).


         No mesmo sentido:



O DELITO PREVISTO NO ART. 305 DA LEI 9.503/97 É INCONSTITUCIONAL, POSTO QUE OFENDE O PRINCÍPIO DE QUE NINGUÉM É OBRIGADO A PRODUZIR PROVA CONTRA SI MESMO, IMPONDO-SE, POR ISSO, A ABSOLVIÇÃO DO RÉU, NOS TERMOS DO ART. 386, III , DO CPP. (...). (TJMG - 2ª Câmara Criminal – Apelação nº 1.0145.07.381756-4/001 - Relator Desembargador Vieira de Brito - Publicado em 27/07/2009, ênfase acrescida).


      Ademais, entendimento diverso ofende os seguintes dispositivos constitucionais:



art. 5°, inc. LXIII (direito ao silêncio) e art. 5º, parágrafos 2° e 3° (tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos), da Constituição da República c/c o art. 8°, 2, alínea “g” (direito a não auto-incriminação), do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos – Decreto n° 678 de 1992).
        


            Importante esclarecer que, em acidente de trânsito com vítima (resultado morte ou lesão corporal), a conduta da pessoa que deixar de prestar socorro não irá configurar o art. 305 do CTB (inconstitucional), mas poderá configurar os seguintes delitos:


       - Art. 135 do Código Penal (omissão de socorro): para o pedestre ou condutor não envolvido no acidente, que não prestar assistência à vítima ou deixar de pedir o socorro da autoridade pública;
      - Art. 304 do CTB: para o condutor – envolvido no acidente, mas que não teve culpa – que não prestar imediato socorro à vítima ou que não solicitou auxílio da autoridade pública).
     - Art. 302, parágrafo único, inc. III, do CTB: para o condutor, que teve culpa em acidente, com resultado morte, que não prestou socorro à vítima do acidente.
      - Art. 303, parágrafo único, c/c o art. 302, parágrafo único, inc. III, ambos do CTB: para o condutor, que teve culpa em acidente, com resultado lesão corporal, que não prestou socorro à vítima do acidente.
                    

Também é relevante dizer que o parágrafo único do art. 304 do CTB, ao prever que o condutor também será responsabilizado pela omissão de socorro, ainda que se trate de vítima com morte instantânea, prevê verdadeiro absurdo.



            Ora, não há que se falar em omissão de socorro para vítima com morte instantânea. Não há crime sem bem jurídico a ser tutelado. Todo socorro pressupõe uma integridade física a ser reparada ou uma vida a ser protegida.  



            Punir alguém por deixar de prestar socorro à pessoa já falecida constitui verdadeira aberração jurídica, que ofende o princípio da lesividade (ofensividade), pois não há afetação concreta de um bem jurídico. Ademais, não há que se falar em fato típico por absoluta impropriedade do objeto (crime impossível, art. 17 do Código Penal).



            Diante o exposto, conclui-se pela inaplicabilidade do art. 305 do CTB, sob pena de ofensa à Constituição da República de 1988.








--


            Como citar este texto:





PEREIRA, Henrique Viana. Da inconstitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro. Blog Temas Penais, 1º de maio de 2013. Disponível em: http://www.temaspenais.blogspot.com.br/2013/05/da-inconstitucionalidade-do-art-305-do.html . Acesso em: data do acesso...